Ser e não ser - a Revolução portuguesa de 1974/1975

O movimento militar vitorioso a 25 de Abril de 1974 deu origem, desde o próprio dia, à explosão de um movimento revolucionário de massa, um verdadeiro abalo telúrico que subverteu a ordem estabelecida a todos os níveis da sociedade. Ele tentou criar e articular novas formas democráticas de organização e expressão da vontade popular em milhares de empresas, nos bairros populares das periferias das cidades, nos campos do sul, nas escolas, nos hospitais, nos órgãos locais e centrais do Estado e até nas Forças Armadas.

Um movimento revolucionário de massas que no seu processo, nos seus distintos períodos ofensivos, ocupou fábricas, as terras do latifúndio, as casas de habitação devolutas, descobriu a autogestão e o controlo operário, impôs a nacionalização da banca e dos principais sectores estratégicos da economia, saneou patrões e administrações, criou Unidade Coletivas de Produção para a Reforma Agrária e geriu a vida de milhares de moradores pobres de Norte a Sul do país. Um movimento que no seu ímpeto impôs na rua, pela sua própria força e iniciativa, como conquistas suas, as liberdades públicas, a democratização política do Estado, a destruição do núcleo duro do aparelho repressivo do anterior regime e a perseguição dos seus responsáveis, o direito à greve, a liberdade sindical, as bases de uma nova justiça social. Um mundo voltado de pernas para o ar, os 19 meses em que o futuro era agora, um curto e raro instante em que as mulheres e os homens comuns, o povo do trabalho e da exploração, sonhou poder tomar o destino nas suas próprias mãos. A isso se tem chamado, e a meu ver bem, a Revolução portuguesa de 1974/1975.

- Do golpe militar à explosão revolucionária –

Esta Revolução tem uma primeira e essencial particularidade a que normalmente se dá pouca atenção. É que ela é detonada por um golpe militar de características singulares na longa história dos golpes militares dos séculos XIX e XX em Portugal. Um movimento militar fruto do cansaço da guerra colonial que se arrastava há 13 anos, sem vitória possível e com graves derrotas à vista, travada contra os ventos da história, injusta e a prazo breve ruinosa. Num país impedido pela ditadura de se expressar e decidir livremente sobre este assunto, o descontentamento contra a guerra, numa dessas ironias em que a história é fértil, vai ser interpretado pelos jovens oficiais que a conduzem no terreno, os capitães e majores que comandavam as companhias, unidades matriciais da quadrícula da ocupação militar colonial.

Ou seja, não é um complot de generais, almirantes e coronéis (até ao fim fiéis ao regime e ao esforço de guerra, salvo as exceções conhecidas). É um movimento de oficiais intermédios a que, no processo, aderirão oficiais subalternos e milicianos. Uma conspiração que, num contexto de descontentamento popular crescente e no ambiente político e ideológico da época, rapidamente evoluiu dos objetivos corporativo-profissionais (que, aliás, o Governo satisfez em outubro de 1973) para um propósito político subversivo: de setembro de 1973 a março de 1974, dos plenários de oficiais de Évora ao de Cascais, o movimento assumiria claramente a consciência da necessidade de derrubar o regime. Sem democratização não haveria solução política para acabar com a guerra.

A rápida extensão e politização da conspiração dos oficiais intermédios, o seu controlo ou neutralização da maioria das principais unidades operacionais dos três ramos das Forças Armadas no país criava, assim, uma situação não imediatamente percetível mas decisiva: privava drasticamente o Estado e a hierarquia militar de força operacional, ou seja, transformava-a, na realidade, e ao seu juramento de obediência ao regime, numa patética e inútil “brigada do reumático”. Numa cabeça sem corpo e sem consciência de o não ter. Mas retirava esse poder de intervenção, também, aos raros generais dissidentes convencidos que tinham na mão uma espécie de golpe militar privado. As primeiras horas do “25 de Abril” e do seu rescaldo foram uma amarga surpresa tanto para os comandantes hierárquicos fiéis como para o general Spínola e os oficiais que o seguiam. Nessa longa noite de 25 para 26 de Abril no quartel da Pontinha, onde se abrigara o estado-maior do movimento, os spinolistas travaram conhecimento próximo com um Movimento das Forças Armadas (MFA) disponível para algumas cedências programáticas quanto às colónias, mas totalmente indisponível para ceder o seu lugar no processo que se ia seguir.

Disto decorre uma segunda característica central: a neutralização/anulação do papel tradicional das FA. A vitória do movimento dos oficiais intermédios, na realidade, rompe a cadeia hierárquica de comando das FA, subtrai-as ao controlo tradicional do Estado e das chefias por ele designadas, dessa forma paralisando a função das FA como órgão central da violência organizada do Estado. Nesse sentido, em rigor deixa de haver FA, sucedendo-lhe – o que era coisa bem distinta -, o MFA, que a breve trecho controlará o essencial do poder militar operacional mais relevante através do COPCON (Comando Operacional do Continente). Neste inicial período de liderança spinolista, até à sua derrota em 28 de setembro de 1974, quando muito, há a luta desesperada dos restos da velha hierarquia (aliás largamente saneada na “noite dos generais” pelos oficiais revoltosos, logo a 6 de maio) para eliminar o MFA como órgão de poder de facto. A derrota do spinolismo consagra assim essa espécie de anulação das FA como espinha dorsal da violência do Estado.

Convém acrescentar que essa circunstância tem ainda uma outra consequência relevante: a paralisação, pulverização e enfraquecimento geral do poder e autoridade do Estado. O que emerge do golpe militar é um poder poliédrico de competências conflituantes e debilitadas: uma Junta de Salvação Nacional sem poder real nas FA, um Governo Provisório sem poderes sobre as FA e com as forças policiais e ministérios paralisados, um Conselho de Estado de competências largamente retóricas e, fora desta lógica institucional (ainda que representada no Conselho de Estado), a Coordenadora do Programa do MFA, única sede de poder efetivo, mas em forte disputa com a fação spinolista nas FA e nos demais órgãos. O velho poder caíra, já não ameaçava ninguém, e deixava um campo vago e vulnerável a uma drástica alteração da relação de forças no plano social e político.

Finalmente, o processo que se vem descrevendo tem um outro efeito: a cessação a curto prazo da guerra colonial nas três frentes e a formação, quer nos contingentes em África, quer na opinião pública portuguesa, de um forte movimento recusando novos embarques de tropas para as colónias, exigindo a litoralização do dispositivo militar e o regresso das tropas, pressionando pela imediata abertura de negociações com os movimentos de libertação nos termos por eles apresentados, ou, nas zonas de guerra, substituindo o combate pela confraternização com o “inimigo”. Rigorosamente, em termos político-militares o exército colonial rendia-se, assumia a derrota. O exército colonial e a opinião pública recusavam-se a continuar a guerra. A descolonização iria assim ser negociada pelo MFA e o Governo Provisório, sem opinião pública favorável a qualquer forma de prolongar o conflito, sem FA dispostas a continuar a combater e sem apoio internacional para algo que não fosse a autodeterminação e a independência para os povos das colónias. Começava o fim do império.

A conjugação dos fatores acima indicados (o apagamento da função das FA como garante central da “ordem” e a deliquescência do poder do Estado) com a forte tensão política e social acumulada no período final do regime marcelista, origina a explosão revolucionária. O movimento de massas, largamente espontâneo, por virtude de um desses “mistérios” que caracterizam as situações revolucionárias maduras para a ação, teve, na própria manhã do golpe – o emblemático desenlace do confronto na Ribeira das Naus e na Rua do Arsenal terá tido nisso o seu papel1 – a dupla intuição de que podia e devia tomar a iniciativa. A intuição do momento e a intuição da força própria: “é agora, porque eles deixaram de ter Exército: somos mais fortes do que eles”. A compreensão quase intuitiva de que a correlação de forças, naquele momento indesperdiçável, era favorável à iniciativa popular. E de espectador, o movimento de massas passa a ator principal. Antes do golpe militar, por si só, não obstante a sua força e radicalidade, não conseguiria derrubar o regime. Mas agora agarrava a oportunidade que esse particular movimento militar lhe facultava, entrando de rompante pelas “portas que abril abriu”. O golpe, ao contrário do que pretendeu a tentativa de Álvaro Cunhal o recuperar para a velha narrativa do “levantamento nacional”2, não era em si mesmo a expressão armada da “insurreição popular” (inicialmente quereria mesmo evitá-la…), não era a explosão revolucionária, todavia, pelas suas características particulares, contribuiria decisivamente para a desencadear.

- O PREC (Processo Revolucionário Em Curso) –

Na sua imparável dinâmica inicial, entre maio e setembro de 1974, o movimento popular revolucionária conquista na rua, nas fábricas, nos bairros populares, nas escolas, nas zonas rurais, muito do essencial: os fundamentos da democratização política, as liberdades públicas fundamentais, a liquidação dos órgãos de repressão e censura política e das milícias fascistas, muito antes de tudo isso ter consagração legal. A democracia política em Portugal não foi uma outorga do poder. Foi uma conquista popular imposta ao poder. O mesmo quanto à democratização social, quanto ao direito à greve, à liberdade sindical, ao salário mínimo, às férias pagas, à redução do horário do trabalho, aos fundamentos de um sistema universal de segurança social ou à ocupação das casas devolutas pelos moradores pobres. O movimento de massas fez tudo isso enfrentando com os seus órgãos de vontade popular eleitos em plenários de fábricas ou assembleias de moradores, a oposição sistemática da Junta de Salvação Nacional (JSN), do Governo Provisório (GP) e até da direção do PCP e da Intersindical nessa fase investidos em guardiões da “ordem democrática” contra o “esquerdismo irresponsável”. No entanto, foi a força desse movimento que se mostrou decisiva na derrota da primeira tentativa contrarrevolucionária do spinolismo, em 28 de setembro de 1974, de alguma forma impondo o MFA como força político-militar hegemónica no processo

A partir de Outubro de 1974, a crise económica, o encerramento ou a pilhagem de muitas empresas pelos patrões em fuga, o disparar do desemprego, alteram e radicalizam os padrões de ação: os trabalhadores ocupam empresas, e, a partir de Janeiro, as herdades dos agrários alentejanos e do Baixo Ribatejo, experimentam a autogestão ou exigem a intervenção do Estado ou do MFA, ensaiam várias formas de controlo operário e fazem-no através de Comissões de Trabalhadores ou de moradores por si eleitas. Manter as empresas a funcionar, derrotar a sabotagem económica, assegurar o emprego, cedo coloca a questão da nacionalização dos sectores estratégicos da economia (a começar pela banca). O propósito é conquistado no rescaldo da derrota da segunda tentativa contrarrevolucionária dos spinolistas, em 11 de março de 1975. Aprova-se a nacionalização da banca (na prática dos grandes grupos financeiros) e legaliza-se a Reforma Agrária já em curso. O controlo operário está na ordem do dia. O processo revolucionário parecia dar um passo em frente. Na realidade, era o último.

Efetivamente, o heteróclito campo da revolução iria sofrer, nos meses seguintes, três derrotas sucessivas e determinantes. A primeira, com as eleições de abril de 1975 para a Assembleia Constituinte. Não foram só os modestos resultados do PCP (12,5%), do MDP (4,1%), do MES (1’02%) e da UDP (0,7%): foi a perceção social da alteração do critério legitimador do poder em redefinição que dela incontrolavelmente resultou. Na realidade, com as eleições de abril 1975 a legitimidade eleitoral impõe-se definitivamente sobre a legitimidade revolucionária. E a verdade é que o PS vencera as eleições constituintes com 37,8% dos votos. A revolução não podia nem adiá-las, nem ignorá-las e muito menos anulá-las (o que era impensável num país onde a oposição fizera das eleições livres a sua bandeira de sempre). Nem tivera a força de as ganhar.

A crise de legitimidade que fere o campo da revolução, nem sequer será suscetível de ser compensada pela retórica tutelar do vanguardismo militar sobre as futuras instituições democráticas que se pretendeu estabelecer no primeiro Pacto MFA/Partidos. A estratégia autocentrada do PCP, agravada desde a viragem de março de 1975, escorada num aproveitamento instrumental das ideias correntes de um certo vanguardismo militar na esquerda do MFA (a célebre aliança povo/MFA), agravam duplamente as divisões do campo revolucionário. Desde logo, entre os seus vários componentes. Uma parte das organizações maoistas respondem à ofensiva do PCP considerando-o como o “inimigo principal”. Os que não vão tão longe encaram-no com criticismo e desconfiança.

Mas mais importante do que isso, essa crise de hegemonia afasta boa parte dos setores sociais intermédios que não reconhecem na hegemonia totalizante do PCP ou nas “democracias populares” o modelo de sociedade futura por que aspiram e não vêm a esquerda radical como alternativa. Começarão precisamente após as eleições de abril de 1975 a abandonar o campo incerto da revolução.

Não tem sentido, todavia, afirmar que o PCP tenha desistido de tomar o poder ou que nem sequer houvesse definido uma linha para a sua conquista. O PCP aplicava conscienciosamente a estratégia dita de Ponomariev para controlar o poder: tomar conta paulatinamente dos setores vitais do Estado (as autarquias, os serviços de informação, o aparelho militar), dos media nacionalizados, do aparelho sindical e apelar à “mobilização da rua” quando esse processo “entupia” em qualquer lado. Era uma ação dissimulada, frequentemente recorrendo à força e a processos administrativos de controlo que começou a gerar fortes reações na sociedade, designadamente no mundo do trabalho, nas autarquias, na opinião pública, nos meios militares, etc. A crise de legitimidade no processo revolucionário e o seu fracionamento interno derivam em grande parte desta espécie de autoritarismo burocrático que se estabelece por antecipação.

De qualquer forma, os campos extremam-se e rompe-se o consenso que depois de abril sustentara as instituições político-militares com a explícita e assumida rotura do campo que, em nome do socialismo democrático ou do “modelo europeu” se opõe ao da revolução socialista (cuja definição estava longe de ser clara ou consensual). Cai o IV Governo Provisório com a saída do PS e do PSD (reagindo à imposição da unicidade sindical e ao “caso República”) e explicita-se a crescente e já indisfarçável desagregação do MFA. A extrema-direita terrorista passa à ação em todo o país contra as sedes e os militantes de esquerda e a hierarquia católica distancia-se do PREC a pretexto da ocupação da Rádio Renascença. Inicia-se a mobilização de massa contra o processo revolucionário com os grandes comícios e manifestações convocados pelo PS a favor de uma democracia parlamentar e “europeia” e as concentrações de apoio ao episcopado no Norte e Centro do país. Na realidade, em Julho de 1975, com a formalização do “Grupo dos 9”, está constituído, tendo como eixo os “Nove” e o PS, um campo político-militar de oposição ao dividido campo revolucionário e que lhe vai disputar, palmo a palmo, as posições-chave no aparelho militar e no Governo, como primeiro passo para o derrotar no plano da mobilização social. Um campo apoiado abertamente pela direita política e dos interesses, por sectores maoistas que enfatizavam o perigo de um regime tutelado pelo PCP e, mais na sombra, sabemos hoje melhor, pelas largas ramificações da extrema-direita fascista e terrorista do ELP/MDLP e grupos afins.

Precisamente, a segunda derrota do campo da revolução socialista, em Agosto/Setembro de 1974, é o afastamento da “esquerda militar”, sobretudo da ala dita “gonçalvista “mais próxima de Vasco Gonçalves e do PCP, não só da liderança do Governo Provisório como das fortes posições detidas no aparelho militar: é encerrada a V Divisão, Vasco Gonçalves é afastado de 1º Ministro e impedido de assumir o cargo de CEMGFA, Eurico Corvacho é demitido da chefia da Região Militar do Norte (RMN), os “gonçalvistas” são colocados em minoria no Conselho da Revolução perdendo 9 conselheiros, são readmitidos os conselheiros do “grupo dos 9”, o novo VI Governo é uma clara guinada à direita. Sobram Otelo Saraiva de Carvalho e o COPCON, mas o cerco a este último núcleo do revolucionarismo militar começa de imediato. O que sai deste embate é uma substancial alteração da correlação de forças a nível político e militar: nas chefias dos três ramos das FA e no Governo instalam-se agora opositores ao curso revolucionário. Não era o fim, mas era o prefácio do fim.

Com o processo revolucionário em curso, deter as cúpulas do poder político e até das chefias militares não bastava para resolver a situação. Havia um movimento de massas disposto a lutar pelo que tinha conquistado. A “contra ofensiva das lutas populares”, como lhe chamará o PCP, será forte e prolongada, mas representa já, não obstante a sua capacidade de mobilização entre Setembro e Novembro, um processo claramente defensivo contra o “avanço da reação” e a iminência de um golpe militar, na realidade, em preparação a partir do “grupo dos 9” e desde a” limpeza” desse Verão. Considerar essa radicalização terminal, quase desesperada e sem orientação clara, como o “momento insurrecional” ou o “assalto final” ao poder do Estado3, parece ser uma abordagem que pouco tem a ver com a realidade. As importantes mobilizações desse período, de uma forma geral, não colocavam a questão da tomada do poder: reclamavam as posições perdidas (demissão de Corvacho, desativação do CICAP, silenciamento à bomba da Renascença, atentados bombistas…), denunciavam os planos político-militares, esses, sim, ofensivos, do campo contra-revolucionário, em suma, estavam à defesa e tentavam segurar o que tinham obtido.

Isso não é incompatível, na ausência de um movimento de massas unificado e de uma direção política clara, com o deixar-se arrastar para a aventura golpista incipiente protagonizada pelos paraquedistas e as unidades do COPCON da Região Militar de Lisboa (RML) com o apoio de alguns sectores sindicais afetos ao PCP e da militância de parte da extrema-esquerda: ocupação das bases aéreas, de alguns pontos estratégicos da capital, da RTP e da Emissora Nacional (EN). A 25 de Novembro, isso constituiu o pretexto há muito esperado para se desencadear o contra-golpe militar a sério. O que precisamente é revelador neste contexto é a surpreendente facilidade com que, praticamente sem resistência (excetuando o breve confronto no quartel da Polícia Militar), o Regimento dos Comandos subjugou, uma a uma, as unidades rebeldes. As escassas centenas de pessoas que as "defendiam" dispersaram e os seus chefes militares, disciplinadamente, foram-se entregar ao Palácio de Belém. O PCP, auscultadas as unidades militares do COPCON na RML e travada a saída dos fuzileiros (a única força suscetível de enfrentar os comandos), dá ordem de desmobilização à Intersindical e aos comités de defesa da revolução. Cunhal não arriscava o partido em aventuras. Preferia negociar. A terceira derrota era, agora, definitiva para o processo revolucionário.

- O Novembrismo –

O novembrismo está para a contrarrevolução como o movimento militar de 25 de Abril esteve para a revolução. Ele não era a contrarrevolução em si, mas a alteração da correlação de forças que impôs abriu o campo a que ela paulatina, progressiva e constitucionalmente se instalasse como política dominante da situação pós-revolucionária. Dissimulada e prudente ela entrava pelas portas que novembro abrira. A 25 de Novembro, o golpe ordenava a prisão de 118 militares, saneava da RTP e da EN 82 trabalhadores e demitia as administrações e direções da imprensa estatizada, substituídas por gente do PS e PSD ou militares afins. Mas ao contrário do que pretendiam a extrema direita e certos sectores da direita, não houve prisões massivas de “vermelhos”, anulação das liberdades públicas, dissolução de partidos ou encerramento de sindicatos ou das suas publicações. O PCP manteve-se no Governo Provisório e a Constituição de 1976 consagraria o objetivo do socialismo, a irreversibilidade das nacionalizações, a Reforma Agrária, o controlo operário e o papel das Comissões de Trabalhadores.

Na realidade, segundo várias fontes orais coincidentes, o Grupo dos 9 parece ter negociado discretamente com o PCP uma contenção pactuada do processo revolucionário. Álvaro Cunhal prefere falar numa contenção objetiva. A verdade é que o PCP travara no terreno os ativistas sindicais, os militantes civis e os militares arrastados para a aventura iniciada pelos paraquedistas. Ela fora instigada por uma espécie de comando “invisível” de oficiais gonçalvistas ou do COPCON, menos controláveis partidariamente, a partir do SDCI4, do que resultaria um processo obviamente distinto de uma clássica e violenta resposta contrarrevolucionária. Um acordo que fazia a economia de uma contrarrevolução sangrenta, mas em que os vencedores alteravam as regras do jogo em dois aspetos cruciais: impunham a consagração da legitimidade eleitoral sobre a legitimidade revolucionária como fundamento das novas instituições e, sobretudo, liquidavam o MFA, repunham a hierarquia tradicional das FA e, nesse sentido, anulavam a aliança essencial com esse braço armado de que dispusera o movimento popular no processo revolucionário. Regressavam as FA como espinha dorsal da violência legal do Estado.

É certo que a revolução terminava. Mas deixava na democracia parlamentar que lhe sucedia a marca genética das suas conquistas políticas e sociais, dos direitos e liberdades que arrancara na luta revolucionária e cuja continuação impusera e defendia na nova situação política. É por isso que a equiparação esquemática que por vezes se faz entre a contrarrevolução e a democracia parlamentar5 desconhece que, no caso português, ela é fruto do compromisso com um processo revolucionário que profundamente a marcou. Ao contrário do que afirma a direita política e historiográfica – em curiosa aproximação com o citado ponto de vista – a democracia política não existe em Portugal apesar da revolução, mas porque houve a revolução.

- Ser e não ser –

Há, portanto, um ser e um não ser na revolução portuguesa de 1974/75. Ela teve a força de subverter a ordem estabelecida atingindo os fundamentos do próprio sistema capitalista, mas não conseguiu segurar e, menos ainda, aprofundar essas aquisições num poder socialista durável. Foi travada a meio caminho e perdeu boa parte das suas conquistas mais avançadas na contrarrevolução mansa que se estabeleceu com a “normalização democrática”. Ou seja, foi contida pelas formidáveis reações que despertou tanto nacional como internacionalmente. O que conduz à necessidade de tentar analisar, ainda que sumariamente, algumas das suas principais dificuldades. Abordarei brevemente três aspetos que me parecem mais importantes.

Em primeiro lugar, a situação de esboço de “duplo poder” criada pelos milhares de órgãos de vontade popular eleitos nas empresas, nos bairros e nos campos do Sul pelos trabalhadores e moradores. É um fato que ele nunca logrou constituir-se numa organização nacional una e articulada. Muito menos, na sua dispersão, assumiu maioritariamente uma orientação política clara ou colocou a si mesmo a questão da tomada do poder. Ao contrário do que aconteceu nos sovietes da Rússia de 1917 ou na revolução conselhista alemã de 1918/19, não há na revolução portuguesa um “poder popular” paralelo unificado, por isso se não colocou nunca, na prática, a questão de “todo o poder aos órgãos de vontade popular”. Até Julho de 1975 o PCP e a sua estrutura sindical opõem-se às Comissões de Trabalhadores (CT) eleitas nos locais de trabalho e, antes e depois disso, cada grupo político da esquerda radical tem as “suas” CT e CM (Comissões de Moradores eleitas nos bairros); as “suas” estruturas de articulação parcial, frequentemente guerreando-se entre si e com as que o PCP cria, finalmente, nesse Verão (M. Perez Suarez, 2018, p. 169 e segs).

Em segundo lugar, na revolução portuguesa, os órgãos de vontade popular não estão armados, novamente num contraste essencial com as citadas experiências soviética e conselhista. Eles são apoiados por um aliado externo a eles próprios, um movimento militar de oficiais subalternos (ou parte dele), ou até por algumas unidades dessa parte, à medida que a esquerda do MFA se vai dividindo e subdividindo. Não há operários, camponeses e soldados em armas, como alguns setores da esquerda radical reclamavam. Aliás, o PCP e as organizações radicais de esquerda mantiveram organizações nas FA mais para influenciar os oficiais do MFA do que para promover o insurrecionalismo dos soldados, excetuando a curta e irremediavelmente tardia experiência dos SUV (Soldados Unidos Vencerão), aliás explicitamente hostilizada pelas várias correntes do MFA. Nestes termos, há um processo revolucionário dos trabalhadores externamente apoiados, quando foi, por um movimento de oficiais crescentemente dividido e debilitado. A vulnerabilidade era evidente: se e quando a reação ao processo revolucionário lograsse reenquadrar o MFA na cadeia de comando das FA, eliminando-o, o movimento de massas, mesmo se se mantivesse, perdia a sua indireta expressão armada e subversora, retomando a natureza de movimento reivindicativo sem capacidade de colocar a questão do poder. Passava à defesa. Foi precisamente isso que aconteceu.

Em terceiro lugar, o campo político da revolução estava profundamente dividido política e ideologicamente sobre a natureza do poder a construir e os caminhos para lá chegar. E não houve, nem força claramente hegemónica suscetível de arrastar ou marginalizar as demais, nem capacidade de encontrar uma plataforma mínima de ação comum (a própria FUP, Frente de Unidade Popular, constituída em 25 de agosto de 1975 entre o PC e outros 7 grupos já com propósitos claramente defensivos e sem participação dos maoistas, começa a desfazer-se 3 dias depois com a saída do PCP). A divergência central seria entre a estratégia cunhalista de progressiva ocupação do aparelho civil e militar do Estado, do MFA, das direções dos sindicatos e dos jornais/rádio/RTP, das autarquias, etc… frequentemente à margem de qualquer verdadeiro escrutínio democrático, de “cima para baixo”, e a orientação comum à esquerda radical de criar na luta de classes um “poder popular” capaz de partir ao assalto revolucionário do Estado, mas sem qualquer vislumbre de consenso ou de convergência sobre como proceder. Mas mesmo no subcampo da extrema-esquerda, a guerra dos sectarismos em torno da “pureza” revolucionária era generalizada. E tudo isso, claro está, se reflete em cheio na coesão da esquerda do MFA, já em rotura com o “grupo dos 9”.

Na realidade, uma das singularidades da revolução portuguesa que o preconceito ideológico de boa parte da historiografia sobre este período tende a ocultar, é que a extrema esquerda, mesmo pulverizada e em guerra interna, teve a força social e política suficiente para dificultar e disputar a hegemonia político-ideológica do PCP no processo, sem, todavia, lograr impor um caminho alternativo e, muito menos, qualquer tipo de plataforma de entendimento comum. Este impasse no campo da revolução abriu uma guerra no seu seio onde a violência sectária de todas as partes, frequentemente, não foi só verbal, dando lugar a agressões, saneamentos, manipulações e até a repressões massivas na tentativa de eliminar politicamente o campo maoista mais hostil ao PCP. Este conflituoso bloqueio afastou, naturalmente, aliados sociais instáveis ou desiludidos, evidenciou impotência na resposta, exprimiu desunião e fraqueza, isolou o campo em si mesmo, e nele se hão-de buscar algumas das razões que levam à incapacidade de resistir com sucesso à contraofensiva no Verão de 1975 e ao que se lhe seguiu.

Concluindo, pode dizer-se com segurança que a revolução portuguesa não foi um assunto encerrado pelo novembrismo de 1975. A força telúrica que explodiu nesse “dia inicial inteiro e limpo” não bastou para vencer, mas permitiu-lhe, todavia, marcar e condicionar fortemente o que se seguiu. No essencial, e seguramente com a feição dos dias de hoje, é ainda em torno da defesa, consolidação e alargamento desse património, ou seu contrário, que se define a luta política em Portugal

O artigo original foi publicado em 2014 e está disponível aqui. Encontra-se republicado de forma exaustiva no livro Ensaios de abril, Tinta da China, outubro de 2023.

  • 1Na manhã do dia 25 de Abril de 1974, na Rua do Arsenal, em Lisboa, tanques da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, aderente ao movimento militar, enfrentaram os de Cavalaria 7, comandados pelo brigadeiro Junqueira dos Reis, fiel ao regime. Depois de várias tentativas de conversações, o brigadeiro dá ordem de fogo contra o capitão Salgueiro Maia que comandava a força de cavalaria de Santarém. O alferes que chefiava a guarnição do tanque recusa-se a obedecer e recebe voz de prisão. O cabo que, em seguida, recebe ordem idêntica, também desobedece. Parte da força passa-se para os revoltosos e os outros voltam para trás. Situação idêntica ocorrera na avenida da Ribeira das Naus, paralela à rua do Arsenal. Tornou-se claro que o regime não tinha força militar que o defendesse.
  • 2Cf. Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (a contra-revolução confessa-se), ed Avante, Lx, 1999, pag. 101 e segs.
  • 3Cf. Raquel Varela, História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975), Lisboa, Bertrand editora, 2014, p. 421 e segs e p. 496 a 498.
  • 4SDCI (Serviço de Deteção e Controlo de Informação).
  • 5Varela, Ibid., p. 482 e segs.

Fernando Rosas