À beira do abismo, o cenário que o IPPC não modeliza

Resumo para decisores políticos da contribuição do grupo de trabalho 1 do IPCC (sobre as bases físicas) para o Sexto Relatório de Avaliação do Clima: apesar da vontade dos autores de usar um vocabulário frio para fazer observações "objetivas", nunca antes um relatório de especialistas em aquecimento global tinha revelado tanta ansiedade sobre a análise científica dos factos à luz das leis inescapáveis da física.

Perspetivas terríveis...

A angústia deriva da enormidade da constatação: mesmo que a COP26 (em Glasgow, em novembro) decida aplicar o mais radical dos cenários de estabilização estudados pelos climatólogos, a saber o que assegura a redução mais rápida das emissões de CO2 e anule as emissões mundiais líquidas em 2060 ou mais tarde (reduzindo também as emissões de outros gases com efeito de estufa), a humanidade terá de enfrentar terríveis perspetivas. Em resumo:

  • O limite fixado em Paris será ultrapassado. A temperatura média da superfície do globo irá aumentar provavelmente 1,6°C (+/-0,4) entre 2041 e 2060 (relativamente à época pré-industrial) para descer entre 2081 e 2100 para 1,4°C (+/-0,4);

  • Atenção, trata-se apenas de médias: é quase certo que a temperatura na parte terrestre aumentará mais rápido do que na superfície dos oceanos (provavelmente entre 1,4 e 1,7 vezes mais rápido). É quase certo igualmente que o Ártico continuará a aquecer mais rapidamente que a média global (muito provavelmente acima de duas vezes mais rápido);

  • Certas regiões de latitude média e semi-áridas e a região das monções na América do Sul baterão o recorde de altas temperaturas nos dias mais quentes (1,5 a duas vezes mais do que a média global), enquanto que o Ártico baterá o recorde de baixas temperaturas nos dias mais frios (três vezes mais que a média mundial);

  • na parte terrestre, as vagas de calor que aconteciam uma vez a cada dez anos passarão a ocorrer quatro vezes a cada dez anos e as que apenas aconteciam uma vez a cada 50 anos irão passar a ocorrer quase nove vezes no mesmo período de tempo;

  • É muito provável que o aquecimento adicional (relativamente ao 1,1°C atual) intensifique as precipitações extremas e aumente a frequência (ao nível global, 7% de precipitações suplementares a cada 1°C de aquecimento). A mesma tendência de subida para a frequência dos ciclones tropicais intensos (categorias 4-5) e sua força. As precipitações intensas e as inundações associadas deverão intensificar-se e tornar-se mais frequentes na maioria das regiões da África e da Ásia, da América do Norte e da Europa. As secas agrícolas e ecológicas serão também mais severas e frequentes em certas regiões, em todos os continentes exceto na Ásia, relativamente a 1850-1900;

  • É evidente que este aquecimento adicional (de 0,5°C+/-0,4 relativamente ao presente) continuará a aumentar o derretimento do permafrost e assim as emissões de metano. Esta retroação positiva do aquecimento não está completamente integrada nos modelos (que, apesar dos seus aperfeiçoamentos crescentes, continuam assim a subestimar a realidade);

  • O aquecimento dos oceanos durante o resto do século XXI será provavelmente duas a quatro vezes mais importante do que entre 1971 e 2018. A estratificação, a acidificação e a desoxigenação dos oceanos continuará a aumentar. Estes três fenómenos têm consequências negativas na vida marinha. Serão precisos milénios para as reverter.

  • É quase certo que os glaciares das montanhas e da Gronelândia continuarão a derreter-se durante décadas e provavelmente o derretimento da Antártida também continuará;

  • É igualmente quase certo que o nível dos oceanos irá subir entre 0,28 a 0,55m no século XXI, relativamente a 1995-2014. Nos próximos 2000 anos, continuará provavelmente a subir – entre dois a três metros – e este movimento continuará até a seguir a esse período. Por isso, em metade dos locais munidos de medidores de marés, as subidas excecionais que se observavam uma vez por século no passado recente serão observadas pelo menos uma vez por ano, aumentando a frequência das inundações nas regiões costeiras menos elevadas;

  • Acontecimentos pouco prováveis mas com muito alto impacto poderão produzir-se a nível global e local, ainda que o aquecimento fique limitado ao intervalo provável no caso do cenário radical (+1,6° +/-0,4°C). Mesmo com este cenário de 1,5°C, não se podem excluir respostas abruptas e pontos de rutura – tais como um maior derretimento da Antártida e a morte de florestas;

  • Um destes acontecimentos pouco prováveis mas possíveis é o colapso da corrente oceânica designada como AMOC (Atlantic Meridional Overturning Circulation). O seu enfraquecimento é muito provável no século XXI mas a amplitude do fenómeno é um ponto de interrogação. Um colapso provocaria muito provavelmente mudanças abruptas nos climas regionais e no ciclo da água, como por exemplo uma deslocação para sul da cintura de chuvas tropicais, um enfraquecimentos das monções em África e na Ásia, um reforço das monções no hemisfério sul e seca na Europa.

no melhor dos casos?

Este relatório obriga a encarar a realidade: estamos literalmente à beira do abismo. Tanto mais que, repitamos e insistamos:

1°) as projeções relativas à subida dos oceanos não integram os fenómenos de deslocação das calotes glaciares que são não-lineares e por isso não modelizáveis e têm o potencial de transformar muito rapidamente a catástrofe em cataclismo;

2°) tudo o que aqui foi enumerado é o que acontecerá, segundo o IPCC, no caso dos governos do planeta decidirem implementar o mais radical dos cenários de redução das emissões entre os que foram estudados pelos cientistas, o cenário que visa não ultrapassar muito os 1,5°C.1 Ora, não é isso que se preparam para fazer. Os planos climáticos dos governos (as “contribuições nacionalmente determinadas”) conduzem-nos atualmente a um aquecimento de 3,5°C. A cem dias da COP26, apenas alguns dos parceiros “elevaram as suas ambições”... sem atingir contudo, e por muito, os níveis necessários de redução das emissões.2

Apenas uma questão de matemática e a sua conclusão política

Greta Thunberg disse um dia que “a crise climática e ecológica não pode simplesmente mais ser resolvida no quadro dos sistemas políticos e económicos atuais. Isto não é uma opinião, apenas uma questão de matemática”. Tem inteiramente razão. Basta alinhar os números para o constatar:

1°) o mundo emite cerca 40Gt de CO2 por ano;

2°) o “orçamento carbono” (a quantidade de CO2 que ainda pode ser emitida globalmente para não ultrapassar os 1,5°C) é apenas de 500Gt (para uma probabilidade de sucesso de 50% - para 83% é 300Gt);

3°) de acordo com o relatório especial de 1,5°C do IPCC, alcançar zero emissões líquidas de CO2 até 2050 requer uma redução de 59% nas emissões globais até 2030 (65% nos países capitalistas desenvolvidos, dada a sua responsabilidade histórica);

4°) 80% destas emissões são devidas à queima de combustíveis fósseis que, apesar da propaganda política e mediática sobre o avanço das energias renováveis, em 2019 ainda cobriam 84% (!) das necessidades energéticas da humanidade;

5°) as infraestruturas fósseis (minas, oleodutos, refinarias, terminais de gás, centrais elétricas, fábricas de automóveis, etc.) – cuja construção não diminui ou pouco diminui! – são equipamentos pesados, nos quais o capital investe por uns quarenta anos. A sua rede ultra-centralizada não pode ser adaptada às renováveis (estas requerem um outro sistema energético, descentralizado): deve ser destruída antes da amortização dos capitalistas e as reservas de carvão, petróleo e gás devem permanecer debaixo do solo.

Portanto, sabendo que três mil milhões de seres humanos carecem do essencial e que os 10% mais ricos da população emitem mais de 50% do CO2 global, a conclusão é imparável: mudar o sistema energético para continuar abaixo dos 1,5°C, consagrando mais energia a satisfazer os direitos legítimos dos carenciados é rigorosamente incompatível com a procura de acumulação capitalista geradora de destruições ecológicas e desigualdades sociais crescentes.

A catástrofe apenas pode ser parada de forma para a humanidade através de um duplo movimento que consiste em reduzir a produção global e em reorientá-la radicalmente para servir as necessidades humanas reais, as da maioria, determinadas democraticamente. Este duplo movimento passa forçosamente pela supressão das produções inúteis ou prejudiciais e a expropriação dos monopólios capitalistas – em primeiro lugar na energia, finança e agro-negócio. Passa também por uma redução draconiana das extravagâncias de consumo dos ricos. Por outras palavras, a alternativa é dramaticamente simples: ou a humanidade liquida o capitalismo, ou o capitalismo liquidará milhões de inocentes para continuar a sua trajetória bárbara num planeta mutilado e talvez invivível.

Os salteadores unidos pelas “tecnologias de emissões negativas”

Claro que os donos do mundo não têm nenhuma vontade de liquidar o capitalismo... Que farão então? Deixemos de lado os negacionistas do clima à maneira de Trump, esses adeptos de Malthus que apostam num neofascismo fóssil, um mergulho na barbárie planetária à custa dos pobres. Deixemos de lado também os Musk e os Bezos, esses milionários obscenos que sonham abandonar o navio Terra tornado invivível pela sua avidez de ratos capitalistas. Concentremo-nos nos outros, mais manhosos – os Macron, Biden, Von der Leyen, Johnson, Xi Jiping… que lutarão como salteadores para que o acordo de Glasgow os favoreça face aos concorrentes mas cerrarão fileiras face aos meios de comunicação social para tentar convencer-nos de que “tudo está sob controlo”.

Para escapar à alternativa que apresentámos, o que propõem estes senhores e senhoras? Em primeiro lugar, claro, a culpabilização dos consumidores, convocados a “mudar de comportamento”... sob a ameaça de sanções. Em seguida, um conjunto de truques e astúcias algumas das quais francamente grosseiras (a não tomada em conta das emissões dos transportes aéreos e marítimos internacionais, por exemplo) e outras mais subtis – mas nem por isso mais eficazes (por exemplo a afirmação de que plantar árvores – no Sul Global – permitiria absorver carbono suficiente para compensar de forma duradoura as emissões de C02 fóssil nos países do Norte). Mas, para além destes truques e astúcias, todos estes gestores políticos do capital creem ferreamente (ou fingem acreditar) numa solução milagre: o aumento da componente das “tecnologias de baixo carbono” (nome de código para o nuclear, nomeadamente as “microcentrais”, e sobretudo a implementação das ditas “tecnologias de emissões negativas” (TEN – ou CDR, acrónimo de Carbon Dioxyde Removal) que supostamente arrefeceriam o clima, retirando da atmosfera enormes quantidades de CO2 que seria armazenado debaixo de terra.

Sobre o nuclear, é inútil elaborar mais depois de Fukushima. Quanto às “tecnologias de emissões negativas”, estas na sua maioria existem apenas enquanto protótipos ou como tecnologias de demonstração e os seus efeitos sociais e tecnológicos prometem ser consideráveis (voltaremos mais tarde a esta questão). Deixando isto de lado: querem-nos fazer crer que salvarão o sistema produtivista/consumista e que o mercado livre se encarregará de os implantar. Na verdade, este cenário de ficção científica não visa antes de mais salvar o planeta: trata-se principalmente de salvar a vaca sagrada do crescimento capitalista e proteger os lucros dos mais responsáveis pelo imbróglio: as multinacionais do petróleo, carvão, gás e agro-negócio.

O IPCC entre ciência e ideologia

E o que pensa o IPCC desta loucura? As estratégias de adaptação e de mitigação das emissões não fazem parte das competências do GT1. Contudo, este emite considerações científicas que os outros Grupos de Trabalho devem tomar em consideração. Sobre as TEN evita o confronto: O Resumo para os decisores diz isto:

“Retirar da atmosfera CO2 antrópico (Carbon dioxyde removal, CDR) tem o potencial de eliminar CO2 da atmosfera e de o armazenar duravelmente (sic) em depósitos (grau de confiança elevado)”. O texto continua dizendo que “o CDR visa compensar as emissões antrópicas para baixar a temperatura da superfície”.

Clarificando, o resumo do GT1 cauciona a ideia de que as tecnologias de emissões negativas poderiam não ser empregues apenas para captar “emissões residuais” de setores nos quais a descarbonização seja tecnicamente difícil (a aviação por exemplo): poderiam também ser implementadas massivamente para compensar o facto de que o capitalismo mundial, por razões que não são “técnicas” mas de lucro, recusa renunciar aos combustíveis fósseis. O texto continua aliás gabando as vantagens deste depósito massivo como meio de alcançar emissões líquidas negativas na segunda metade do século:

“As CDR que conduzem a emissões negativas mundiais reduziriam a concentração de CO2 atmosférico invertendo a acidificação da superfície dos oceanos (grau de confiança elevado).”

O resumo formula uma reserva mas esta é sibilina: “As tecnologias CDR podem ter efeitos potencialmente alargados nos ciclos bioquímicos e no clima, o que pode enfraquecer ou reforçar o potencial destes métodos para eliminar o CO2 e reduzir o aquecimento e pode igualmente influenciar a disponibilidade e a qualidade da água, a produção alimentar e a biodiversidade (grau de confiança elevado)”.

Clarificando, não é que as TEN sejam assim tão eficazes, alguns “efeitos” poderiam “enfraquecer o seu potencial para eliminar o CO2”. A última parte desta frase faz alusão aos impactos sociais e ecológicos: a bioenergia com captura e sequestro de carbono (a mais matura das TEN à data) só poderia reduzir significativamente a concentração atmosférica de CO2 se uma superfície igual a um quarto das terras cultivadas em permanência atualmente servisse para produzir biomassa energética – em detrimento das reservas de água, da biodiversidade e/ou da alimentação da população mundial.3

Assim, por um lado o GT1 do IPCC baseia-se nas leis físicas do sistema climático para nos dizer que estamos à beira do abismo, no ponto de cair irreversivelmente num cataclismo inimaginável; por outro, objetiva e banaliza a fuga em frente político-tecnológica pela qual o capitalismo tenta, uma vez mais, adiar a compreensão do antagonismo irreconciliável entre a sua lógica de acumulação ilimitada do lucro e a finitude do planeta. “nunca antes um relatório de especialistas em aquecimento global tinha revelado tanta ansiedade sobre a análise científica dos factos à luz das leis inescapáveis da física” escrevíamos no início deste artigo. Nunca também um tal relatório tinha ilustrado tão claramente que uma análise científica que considere a natureza um mecanismo e as leis do lucro como leis físicas não é verdadeiramente científico mas cienticista, ou seja, parcialmente pelo menos, ideológico.

É preciso então ler o relatório do GT1 do IPCC como sendo ao mesmo tempo a melhor e a pior das coisas. A melhor porque fornece um diagnóstico rigoroso que permite extrair argumentos excelentes para acusar os capitalistas e os seus representantes políticos. A pior porque ao mesmo tempo semeia o medo e a impotência... com a qual os capitalistas irão lucrar ainda que o diagnóstico os acuse! A sua ideologia cienticista afoga o espírito crítico numa enxurrada de “dados”. Desvia assim o olhar das causas sistémicas com duas consequências:

1°) a atenção foca-se na “alteração dos comportamentos” e noutros gestos individuais – cheios de boa vontade mas pateticamente insuficientes;

2°) em vez de ajudar a diminuir o fosso entre consciência ecológica e consciência social, o cienticismo preserva-o.

Ecologizar o social e socializar a ecologia é a única estratégia que pode parar a catástrofe e fazer renascer a esperança numa vida melhor. Uma vida que cuide das pessoas e dos ecossistemas agora e numa visão de longo prazo. Uma vida sóbria, alegre e carregada de sentido. Uma vida que os cenários do IPCC nunca modelizam, na qual a produção dos valores de uso para a satisfação das necessidades reais, democraticamente determinadas em respeito pela natureza, substitui a produção de mercadorias para lucro de uma minoria.

10 de Agosto 2021

Texto publicado originalmente na página da Gauche Anticapitaliste. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

  • 1Detalhar os impactos dos outros cenários iria tornar este texto inutilmente pesado. Contentemo-nos com uma indicação que diz respeito ao nível dos mares: no cenário business as usual, uma subida de dois metros em 2100 e de cinco em 2150 “não está excluída”. E a longo prazo, dois mil anos, para um aquecimento de 5°C, os mares subiriam inevitavel e irreversivelmente (à escala humana do tempo) entre... 19 a 22 metros!
  • 2Por exemplo, a União Europeia, “campeã climática”, estabelece um objetivo de 55% de redução em 2030 apesar de ser necessário um objetivo de 65%.
  • 3Ver a este respeito a discussão no meu livro Trop tard pour être pessimistes, Ed. Textuel, 2020.

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