Publicamos aqui o prefácio redigido por Franck Gaudichaud e Éric Toussaint, a pedido da revista cubana Temas, para um livro coordenado por Julio César Guanche, a ser publicado na Argentina com o título Izquierdas y derechas en America latina.
Nos últimos anos, o mundo foi marcado por múltiplas crises. Podemos dizer que tem sido uma «policrise» global, interseccional e interligada, do capitalismo neoliberal: turbulências económicas e políticas profundas, guerras e violências armadas, descalabro acelerado dos ecossistemas e do clima, pandemias e extractivismo predador, redefinições brutais dos equilíbrios geopolíticos e tensões interimperialistas, etc. Mais uma vez, a humanidade atravessa tempestades e grandes desafios; um momento histórico no qual, claramente, a sua própria sobrevivência como espécie e a sua (in)capacidade para habitar colectiva e pacificamente este planeta se encontram em jogo. A grande revolucionária alemã Rosa Luxemburgo declarou, na década de 1910, em um momento negro do século passado: socialismo ou barbárie! Este slogan ressoa com força nos dias de hoje1, em um contexto onde os povos e os movimentos populares continuam a resistir, a mobilizar-se, a debater, a propor, mas sem conseguirem ultrapassar a sua fragmentação estrutural, nem – por agora – vislumbrar forças emancipadoras com real capacidade para acompanhar, consolidar essas resistências e construir um rumo a médio prazo para alcançar alternativas democráticas e ecossociais «raizal», para citar o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda (1925-2008).
Entretanto, se observarmos as Américas «Latinas» e as Caraíbas ao longo das últimas décadas, as terras de Berta Cáceres (1917-2016), José Carlos Mariátegui (1894-1930) e Marielle Franco (1979-2018) parecem procurar novas vias sociais e políticas, despertando as esperanças da esquerda mundial, para além da queda do muro de Berlim e de um neoliberalismo voraz. «Viragem à esquerda», «vaga progressista», «fim do neoliberalismo», «maré rosa»: a inflexão sociopolítica vivida por numerosos países da América do Sul e da América Central nos anos 2000 surpreendeu muitos observadores e observadoras e fascinou muitos outros, nomeadamente na Europa.2 O desafio – em particular para países como a Bolívia, a Venezuela e o Equador, que construíram uma narrativa e uma promessa «transformadora» – consistia em encontrar vias político-eleitorais e nacional-populares com uma chave «pós-liberal» e anti-imperialista. Para certos militantes e movimentos, não se tratava apenas de «democratizar a democracia», mas também de não permanecer encerrado em um novo modelo baseado no extractivismo das matérias-primas, na submissão ao mercado mundial e em diversas formas de colonialismo interno e externo.
Mais de 20 anos depois do início deste «ciclo», podemos constatar até que ponto o objectivo de transformação não foi alcançado, mesmo tendo em conta os diversos ritmos e realidades dos cenários regionais e nacionais da Abya Yala.3 Obstáculos e dificuldades, desencanto e desilusão foram comuns a diversos países governados pela esquerda e pelo «progressismo», sem que uma dinâmica homogénea seja perceptível. Paralelamente, as forças conservadoras e as novas extremas direitas souberam aproveitar este contexto de crises múltiplas, para imporem novas narrativas políticas e culturais furiosamente «antiprogressistas», sustentadas pelos grandes grupos mediáticos e pelas oligarquias económicas locais e imperiais, de modo a, in fine, se armarem em alternativas populares: Javier Milei é o mais recente elo desta cadeia reaccionária global4. Nayib Bukele Ortez, reeleito na Presidência de Salvador em fevereiro/2024, desenvolveu um estilo de governação que faz lembrar a experiência da presidência de Rodrigo Duterte nas Filipinas entre 2016 e 2022, durante a qual milhares de execuções extrajudiciais contra sectores «lumpenizados» foram levadas a cabo por forças repressivas, sob o seu controlo, em nome da luta contra o tráfico de droga. Daniel Noboa, eleito presidente do Equador em 2023, parece tentado a seguir na mesma direcção.
Como o livro demonstra, é essencial fazer um balanço crítico e argumentado das últimas décadas, do ponto de vista das ciências sociais e da sua metodologia, aprofundando e debatendo os ensaios e publicações que tentam desencriptar a América Latina dos nossos dias. O objectivo consiste em analisar a complexidade cambiante do período aberto nos anos 2000 (com a eleição de Hugo Chávez em 1999), resultante das lutas sociais e populares contra a hegemonia neoliberal do período precedente. Um primeiro sobressalto seguido de uma multiplicidade de vitórias eleitorais permitiu uma relativa «idade de ouro» (entre 2005 e 2011) da esquerda e dos governos progressistas, com diversas formas de estado compensador e redistribuidor, uma redução notável da pobreza e novas formas de participação política, período este seguido de um refluxo regional, de uma redução dos preços das matérias-primas e de uma retoma das forças conservadoras (2011-2018) marcada – entre outras coisas – pela crise profunda da «revolução bolivariana», desembocando no momento caótico pós-pandemia dos últimos anos (2019-2023), em que assistimos à vitória de Bolsonaro no Brasil, à confirmação das dinâmicas de direita no Equador, mas também a levantamentos populares no Chile, no Haiti, na Colômbia, no Peru e no Equador. Ao mesmo tempo, uma terceira «vaga» de esquerdas institucionais (ou «progressismo tardio», segundo Massimo Modonesi), claramente limitada (em relação ao início de século), começou a tomar forma no Chile com a eleição de Gabriel Boric (2021), na Colômbia com a vitória de Gustavo Petro (2022), nas Honduras com a presidência de Xiomara Castro (2022), na Guatemala com a eleição de Bernardo Arévalo em 2023 e também – desde 2018 – com a eleição de Manuel López Obrador no México ou em 2020 com o regresso democrático do Movimento pelo Socialismo (MAS) na Bolívia.
Este trabalho colectivo, coordenado pelo investigador Julio César Guanche e publicado pela revista cubana Temas, convida-nos a compreender estes processos a partir de diversos pontos de vista, geografias e sensibilidades. O principal interesse desta publicação reside em abarcar as realidades políticas e sociais de vários países: Argentina, Brasil, Chile, Equador, México, Peru e Cuba, a partir de uma análise crítica das continuidades e dos fenómenos novos na região; e articula as transformações sociais e culturais subjacentes às mudanças políticas em curso. Assim, este livro pluralista trata dos processos de esquerda ou «progressistas» no poder, bem como dos processos conservadores e reaccionários. Descreve as dimensões plebeias do populismo ou de extrema direita (no Equador, no Brasil e no Peru), e descodifica as contradições dos progressistas no poder. Quando os autores abordam aqui os aspectos partidários e institucionais (por exemplo, a propósito da direita equatoriana ou da esquerda chilena e mexicana), não esquecem o vasto campo das mobilizações colectivas e da sociedade civil organizada: movimentos sociais afro-descendentes, lutas feministas e antifeministas, movimentos religiosos fundamentalistas, movimentos indígenas, todos estão presentes nesta obra. Sem qualquer dúvida, a diversidade de abordagens e de origens dos investigadores aqui incluídos, todos com uma longa história de trabalho e de vida em diversos países da região, fornece ao leitor uma visão interessante, plural e contrastante do continente nos tempos que correm.
O politólogo Noberto Bobbio, na sua obra já clássica Direita e Esquerda, Ensaio sobre Uma Distinção Política5, sublinhou de forma convincente que a distinção dos dois pólos deste binómio pode ser um bom ponto de partida para reflectir sobre o mapa político. Nesta distinção, Bobbio parte do eixo liberdade/igualdade para classificar as forças políticas: as direitas reivindicam de forma privilegiada o conceito de «liberdade» (do mercado e/ou do indivíduo em particular) e as esquerdas o de «igualdade» (e de emancipação social e colectiva). Transpondo esta reflexão para a América Latina e Caraíbas, e rompendo com as visões eurocêntricas, seria necessário introduzir um conjunto de conceitos para pensar esta distinção, como sejam a colonialidade [colonialité no original] do poder e as concepções nacionais/plurinacionais de estado, as noções de soberania popular e anti-imperialista, os direitos dos povos indígenas e as relações sociais de raça ou de género, os modelos de desenvolvimento e os modelos socioambientais, etc. Para além destas caracterizações, são sobretudo as zonas cinzentas e os recantos dos espaços sociopolíticos latino-americanos actuais que este livro confirma, espaços que não se resumem a uma simples dicotomia esquerda/direita. Esta publicação propõe versões actualizadas de textos publicados em um dossier da revista Temas em 2022. Na sua apresentação, notam os coordenadores a justo título:
«A chegada de novos governos de esquerda e de centro-esquerda identificados como “maré rosa” na América Latina e nas Caraíbas remete para um fenómeno eleitoral cujas circunstâncias políticas são mais complexas. No seu seio coexistem diversas estratégias, cruzam-se bases sociais entre as zonas de esquerda e as zonas conservadoras, como o neoevangelismo, a rejeição do autoritarismo de certos movimentos progressistas, as críticas sobre as questões de género, a justiça racial e ambiental, as reivindicações dos povos indígenas, e outros assuntos na ordem do dia da política, como a transição energética, a perpetuação do extractivismo e a correlação com um sistema de democracia popular, chame-se ele socialismo ou não. Embora tenham perdido lugares no governo, as correntes conservadoras ganharam uma base popular, como reflecte não só a sua representação parlamentar, mas também o reforço do consenso neoliberal entre essas bases, sobre a “liberdade” e a “democracia” e contra o “populismo”. Estas correntes não deixaram de utilizar a repressão para manter um regime de ilegalidade caracterizado por uma grande devastação social».6
Mais do que nunca, as realidades latino-americanas mostram a turbulência das sociedades e das forças políticas no seu conjunto: uma situação na qual a extrema direita «libertária» e «anarco-capitalista» consegue ganhar votos em sectores populares precários, ao mesmo tempo que forças políticas provenientes do âmago da esquerda encarnam práticas autoritárias ou desligam-se dos movimentos sociais, feministas ou ecologistas. Isto mesmo é confirmado em vários capítulos do livro e é sublinhado por Daniel Kersffeld, que nos recorda que o progressismo foi marcado nos últimos anos por diversas formas de caudilhismo, corrupção, aceitação do modelo de desenvolvimento extractivista, ou até pela aplicação de políticas de «mão de ferro» e militarização, embora estas parecessem até há pouco tempo ser «património político» da direita. Em outro capítulo, a investigadora e militante feminista anti-racista Alina Herrera Fuentes sublinha que o conservadorismo patriarcal não vem apenas das fileiras da direita:
«Os percursos nacionais dos progressistas foram e são profundamente frágeis e descontínuos. Em certos períodos e em certas questões, foi possível alcançar progressos, mas noutros momentos esses progressos foram travados. Por exemplo, apesar de a taxa de pobreza mundial ter diminuído, a feminização da pobreza aumentou durante esse período. Por outras palavras, a pobreza diminuiu globalmente, mas as mulheres beneficiaram menos que os homens das políticas que permitiram alcançar esse objectivo (UN Women, Annual Report 2017–2018). Mas acima de tudo são as políticas que põem em causa as normas tradicionais da família e da sexualidade – como o aborto, o casamento homossexual, o reconhecimento da identidade de género e, em certos casos, a violência de género – que sofreram mais entraves vindos do conservadorismo dos dirigentes ou directamente das alianças entre homens políticos no poder e o neoconservadorismo religioso em expansão. As provas nesse sentido infirmam a hipótese segundo a qual, por definição, a política de esquerda põe em questão as crenças e as hierarquias conservadoras com um base religiosa implícita ou explícita».
É claro que estas observações não anulam o balanço positivo dos anos 2000-2010 no que diz respeito à luta contra a pobreza, aos progressos das políticas públicas na educação, na saúde ou na construção de habitações, nas conquistas dos processos constituintes originais (Bolívia, Equador, Venezuela), a dinâmica bolivariana por uma integração regional independente dos Estados Unidos (UNASUR, CELAC, ALBA), o desenvolvimento de uma nova diplomacia Sul-Sul, nomeadamente graças a Hugo Chávez, que tentou privilegiar um eixo de esquerda anti-imperialista, e em certa medida Lula, que favoreceu o crescimento da influência do seu país na região e o eixo dos BRICS. No que diz respeito às políticas internacionais de Lula e Dilma Rousseff, seria útil levar em conta e actualizar a análise feita pelo autor marxista brasileiro Ruy Mauro Marini (1932-1997) nos anos 1960, quando ele classificou o Brasil como «subimperialista». Como nota Claudio Katz:
«Ruy Mauro Marini não se contentou com repetir as velhas denúncias do papel opressivo dos Estados Unidos. Introduziu o conceito controverso de «subimperialismo» para descrever a nova estratégia da classe dirigente brasileira. Descreveu as tendências expansionistas das grandes empresas afectadas pela estreiteza do mercado interno e apercebeu-se da sua promoção de políticas estatais agressivas para fazer incursões nas economias vizinhas».7
Enquanto Hugo Chávez apoiava activamente o projecto ALBA com Cuba, com o apoio nomeadamente da Bolívia e do Equador, e lançava as bases de um Banco do Sul, Lula deu prioridade ao reforço do papel regional e internacional do Brasil como potência regional, coordenando a intervenção militar no Haiti (o que convinha a Washington) e participando activamente no lançamento dos BRICS em 2009 com a Rússia, a China e a Índia (aos quais se juntaria a África do Sul em 2011). Hugo Chávez precisava da protecção do Brasil de Lula contra o perigo protagonizado por Washington e punha grandes esperanças no seu apoio à criação de um Banco do Sul. Embora o acto fundador do Banco tenha sido assinado em Buenos Aires – em dezembro de 2007 – pelos presidentes brasileiro Lula, argentino Néstor Kirchner, boliviano Evo Morales, venezuelano Hugo Chávez e paraguaio Nicanor Duarte Fruto, o facto é que o Brasil paralisou a implementação do Banco8. O Banco do Sul nunca chegou a funcionar9 e nenhum crédito foi concedido ao longo dos seus 15 anos de vida. De facto, Lula favoreceu a utilização do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) para a política de crédito na região. Este banco concede crédito a grandes empresas brasileiras como a Odebrecht, Vale do Rio Doce, Petrobras, etc., a fim de que elas possam estender e reforçar as suas actividades no estrangeiro10. Depois, Lula apoiou o lançamento das actividades do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) criado pelos BRICS, com sede em Xangai e presidido a partir de 2023 por Dilma Rousseff11. Lula também favoreceu o Mercosur, que respondia aos interesses do grande capital brasileiro. O desmanchar do Banco do Sul tem de ser incluído na avaliação crítica da primeira vaga do progressismo. Tal como o isolamento relativo do Equador em 2007-2009 aquando da sua decisão de auditar a sua dívida e suspender o pagamento de grande parte da mesma, declarando-a ilegítima. O Equador obteve uma vitória retumbante contra os credores privados, mas o seu exemplo não foi seguido por outros países da região, apesar das promessas feitas na reunião de chefes de estado da região que se realizou na Venezuela em julho de 2008, e contra a vontade do presidente Fernando Lugo (Paraguai) de seguir o exemplo do Equador12.
Assim, ao fazermos o balanço, podemos ver todas as nuances, recuos e limites deste primeiro ciclo, dependente de equilíbrios frágeis e transitórios, que deu lugar a uma recomposição da direita e até a figuras fascistas (Bolsonaro, Kast, Milei, Añez, Bukele, etc.). De facto, embora este livro fale de «esquerdas e direitas» no plural, ele também analisa a noção de «progressismo». Esta caracterização está presente em quase todos os capítulos, mas que significa hoje o progressismo latino-americano? A crise do processo bolivariano na Venezuela, as tímidas reformas do jovem presidente Boric no Chile, o «populismo de esquerda» de AMLO? [Andrés Manuel López Obrador]. A palavra é por natureza conceptualmente vasta e ambígua, tornando-se inapreensível e ao mesmo tempo omnipresente. De facto, é interessante recordar que «esta noção de progressismo pertence à linguagem com a qual, historicamente, a esquerda marxista designou os programas e as forças sociais e políticas social-democratas, populistas ou nacional-populistas que procuravam transformar e reformar o capitalismo aplicando doses de intervenção e de regulação estatal e de redistribuição das riquezas: no caso da América Latina, com nítida tónica anti-imperialista e desenvolvimentista. Este último aspecto, hoje em dia apresentado como «neodesenvolvimentista», está ligado à noção de progresso e contribui para definir o horizonte e o carácter do projecto, assim como as críticas que, partindo de perspectivas ambientalistas, ecossocialistas ou pós-coloniais, põem em questão a ideia de progresso e desenvolvimento, tanto nas suas expressões ao longo dos séculos passados, como no seu prolongamento no século XXI».13
Pensamos que este livro mostra que também podemos encontrar ambiguidades e pontos de fuga quando se trata de definir os direitos no tempo presente, o conservadorismo ou mesmo a nova extrema direita. No entanto, o que os casos do Equador analisado por Franklin Ramírez Galegos, do Brasil apresentado por Luiz Bernardo Pericás e do Peru (artigo de Damian A. Gonzales Escudero) sublinham, é que a confrontação com o progressismo constitui uma base comum para a consolidação e radicalização da direita actual, seja nos aspectos nacional-populares ou de centro-esquerda. É o que confirma um país que actualmente está no cerne da reacção continental: a Argentina, onde a construção da candidatura «outsider» de Milei se apoiou no ódio de uma parte do eleitorado ao peronismo e ao kerchnerismo, num contexto de descalabro económico, de hiperinflação e de rejeição da administração de Alberto Fernández, que não cumpriu as suas promessas de denunciar a dívida ilegítima e odiosa contraída por Mauricio Macri junto do FMI em 2018. Outro país que será interessante incluir nas reflexões é a Nicarágua de Daniel Ortega, pois oferece o exemplo dramático de um país governado por uma força política inicialmente saída de uma revolução (1979-1989) e que encarna hoje a tutela de um clã familiar repressivo, que quis aplicar um programa do FMI em 2018, provocando uma rebelião massiva da juventude e de outros sectores populares, e que decidiu reprimi-la brutalmente a fim de se manter no poder.14
É preciso reconhecer ainda outro aspecto original deste livro: inclui uma reflexão sobre a situação em Cuba, uma reflexão crítica tanto mais necessária quanto Cuba e a sua revolução constituíram um «farol» central do imaginário da esquerda latino-americana e mundial ao longo do século XX15. Manuel R. Gómez revisita a história da direita cubana, enquanto instrumento «útil» – mas não decisivo – da política estatal e imperialista dos EUA, tanto em períodos de «mão de ferro» de Washington em relação à ilha caribenha, como durante a reaproximação relativa e tímida sob o mandato de Obama. Quanto a Wilder Pérez Varona, ele coloca com pertinência a seguinte questão: em que sentido podemos hoje falar de esquerda e direita na Cuba dos dias de hoje, tendo em conta as especificidades da história cubana desde 1959 e do seu regime sociopolítico? Neste caso, o próprio termo «revolução» torna-se vago, pois
«durante décadas, o termo revolucionário fundiu relações muito diversas. Desde muito cedo esta condição expulsou toda a oposição da comunidade política nacional e classificou-a de contra-revolucionária. A utilização do termo «revolução» serviu para sintetizar uma época excepcional, cujas realizações e conquistas resistiram à beligerância sistemática dos EUA. A sua utilização evitou com frequência a análise das contradições do processo e dos seus actores. A premissa da unidade face ao cerco externalizou o conflito político».
Falar hoje, em Cuba, em termos de esquerda/direita remete de facto para uma questão essencial: a representação política, ou melhor, o seu défice, no contexto de uma sociedade cada vez mais desigual e diferenciada, onde cresce a contestação e as exigências crescentes de mudanças nos domínios económico e cultural, mas também de uma verdadeira democratização política.
Para concluir esta breve apresentação, regressemos à nossa constatação inicial. A «policrise» mundial e a tomada de consciência de que estamos a entrar em um período de turbulências que se fazem sentir em todo o continente. Assim, como afirmam Gabriel Vommaro e Gabriel Kessler, na actualidade «a polarização ideológica com componentes afectivas, o descontentamento generalizado e a polarização em torno de um líder emergente marcam a política latino-americana, cujos eleitorados, tal como em outras latitudes, são cada vez mais voláteis e descontentes»16. Talvez encontremos aqui uma lição essencial deste livro colectivo e das urgências que ele exprime. Para além dos regimes políticos, tanto de direita como de esquerda, progressistas ou conservadores, o mal-estar dos cidadãos e o descontentamento dos «de baixo» não pára de crescer. Mas há também desespero, quando as alternativas democráticas locais e globais não emergem, um desespero que poderia abrir a porta a forças cada vez mais violentas e reaccionárias, e até a um possível fascismo17.
Olhando para o cerne do ciclone, os/as autores desta obra contribuem para a análise do momento crucial que vivemos, para uma compreensão mais profunda do presente e para o desenho de perspectivas futuras para a América Latina e as Caraíbas.
Artigo publicado em 25 de junho de 2024 no site cadtm.org
Traduzido por Rui Viana Pereira (a partir da versão francesa traduzida por Christian Dubucq)
- 1Andreas Malm, Corona, Climate, Chronic Emergency: War Communism in the Twenty-First Century, Londres, Verso, 2020.
- 2Ver por exemplo: Tariq Ali, Piratas del Caribe. El eje de la esperanza, Madrid, Foca ediciones, 2008.
- 3Maristella Svampa, Del cambio de época al fin de ciclo : gobiernos progresistas, extractivismo, y movimientos sociales en América Latina, Buenos Aires, Edhasa, 2017, e Massimo Modonesi, «La normalización de los progresismos latinoamericanos», Jacobín América Latina, julho/2022, https://jacobinlat.com/2022/07/04/la-normalizacion-de-los-progresismos-latinoamericanos.
- 4Pablo Stefanoni, La rébellion est-elle passée à droite? Paris, Éditions La Découverte, 2022. Miguel Urban, Trumpismos: Neoliberales y Autoritarios. Radiografía de la derecha radical, Madrid, Verso, 2024, https://versolibros.com/products/trumpismos.
- 5Norberto Bobbio, Droite et gauche: essai sur une distinction politique, Seuil, Paris, 1996.
- 6Temas, N° 108-109, marzo-octubre 2022, https://temas.cult.cu/revista/revista_datos/3.
- 7Claudio Katz, La teoría de la dependencia cincuenta años después, Argentine, Ed. Batalla de Ideas, 2018, p. 102.
- 8Éric Toussaint, Banque du Sud et nouvelle crise internationale, Paris, 2008, CADTM/Syllepse.
- 9Éric Toussaint, «O Banco do Sul pode ser uma alternativa, mas o dos BRICS não», CADTM, 19/08/2014. Ver também: Éric Toussaint, «A experiência frustrada do Banco do Sul na América Latina e quais políticas alternativas poderiam ter sido colocadas em pratica ao nível continental», 22564, CADTM, 10/05/2024.
- 10Caio Bugiato, «A política de financiamento do BNDES e a burguesia brasileira», in Cadernos do Desenvolvimento, http://www.cadernosdodesenvolvimento.org.br/ojs-2.4.8/index.php/cdes/article/view/125/128
- 11Éric Toussaint, «Os BRICS e o seu Novo Banco de Desenvolvimento fornecem alternativas ao Banco Mundial, ao FMI e às políticas promovidas pelas potências imperialistas tradicionais?», CADTM, 22/04/2024.
- 12Éric Toussaint e Benjamin Lemoine, «Depois das esperanças frustradas, o sucesso no Equador», CADTM, 29/08/2016.
- 13Franck Gaudichaud, Massimo Modonesi, Jeffery Webber, Fin de partie. Les expériences progressistes dans l’impasse, (1998-2019), Paris, 2020, Syllepse.
- 14Nathan Legrand, Éric Toussaint, «Nicaragua, la otra revolución traicionada», CADTM, 30/01/2019, 17068. Éric Toussaint, «A evolução do regime do presidente Daniel Ortega a partir de 2007», 16461, CADTM, 25/07/2018. Éric Toussaint, «Nicarágua: Reflexões sobre a experiência sandinista dos anos 1980-1990, para compreender o regime de Daniel Ortega e de Rosario Murillo», https://www.cadtm.org/Nicaragua-Reflexoes-sobre-a-experiencia-sandinista-dos-anos-1980-1990-para, CADTM, 8/08/2018.
- 15Tanya Harmer, Alberto Martín Álvarez (dir.), Toward a Global History of Latin America’s Revolutionary Left, Gainesville, University of Florida Press, 2021.
- 16Dossier «Cómo se organiza el descontento en América Laina? Polarización, malestar y liderazgos divisivos», Nueva Sociedad, Nº 310, março-abril 2024, https://nuso.org/articulo/310-como-se-organiza-el-descontento-en-america-latina/
- 17Dossier ’Ultraderechas, neofascismo o postfascismo’, Cuadernos de Herramienta, avril 2024, https://herramienta.com.ar/cuadernos-de-herramienta-las-ultraderechas-neofascismo-o-postfascismo